
O
tempo quaresmal, eminentemente penitencial, em preparação para a Páscoa,
é o propício momento em que todos nós, fiéis batizados, somos
convidados a intensificar a vida de oração, penitência e caridade, com
realce especial ao jejum e à abstinência. Contudo, só se compreende a
Quaresma por intermédio do olhar de um Deus, que se encarna, morre e
ressuscita por amor a cada um de nós. Isso mesmo, Deus mergulha na
epopeia e tragédia da vida humana para nos resgatar das correntes do
pecado e dar-nos a vida eterna.
A Quaresma está intimamente conectada com o desejo de felicidade e
infinito, latentes em cada coração humano. Sem ela não se entende o ser
cristão, sem ela não se entendem os mistérios da indigência e da
grandeza humana. Constata-se por muitos espaços da vida humana um mar de
tristezas e frustrações. A depressão, segundo dizem, é o mal de nosso
século. Nunca sentimos tanta falta de infinito, e nunca estivemos tão
presos ao efêmero, ao passageiro, ao transitório, àquilo que não gera
relações humanas, valorizando demasiadamente o virtual e nos esquecendo
do real, da dor, das misérias, da pobreza, da violência e das misérias
morais que relativizam o belo e o sagrado e geram a cultura do
descartável.
O que impede o coração humano de encontrar a felicidade? Muitas são as
respostas, muitos estudos são apresentados diariamente nos meios de
comunicação. Buscam-se explicações psicológicas, sociais, econômicas,
políticas, entre outras. Mas são poucos os que chegam ao fundo do
problema. A verdadeira e plena felicidade só será alcançada quando
passarmos pela via quaresmal, caminho de purificação e penitência, que
nos liberta, por meio da graça, dos grilhões do pecado.
O pecado é o maior obstáculo. Infelizmente, estamos imersos numa cultura
que o comercializa. O mais triste é que, ao buscar a felicidade, a
humanidade parece afundar-se cada vez mais no lodo e morre sufocada pelo
veneno do pecado, que destrói almas e sonhos. E é a própria sociedade
que promove esse tipo de vida, se questiona dos porquês dessas
realidades que contaminam o orbe sem se importar com as condições
econômicas ou sociais das pessoas.
A maior alienação é a incapacidade de perceber o quanto o ser humano se
quebra quando se entrega ao pecado. Existe uma desintegração espiritual
que se manifesta na sociedade e prolifera em estruturas. Ele nasce
pessoal e, em proporção com a matéria, gravidade e circunstâncias, gera o
mal social.
O reconhecimento de nossas misérias e fraquezas diárias é o primeiro
passo para o encontro profundo consigo mesmo e com Deus. O pecado é a
desintegração da nossa natureza e aliena nossa vida da realidade eterna a
qual todos nós somos chamados. A penitência não é masoquismo, mas
reconhecer de modo concreto e visível a nossa indigência e necessidade.
Ela nos coloca no caminho do perdão, que é o resgate da unidade perdida
pelo mal. O salmo penitencial 51(50) exclama, com beleza poética, o
drama do pecado e a recuperação do Rei Davi. A primeira coisa que o
pecado ataca é nossa consciência, ou seja, a capacidade de perceber e
distinguir o mal e o bem. O Rei Davi possui a graça de ter um grande
amigo, o profeta Natã. Este, sem medo das consequências e guiado pela
força do Espirito Santo, o [Davi] acusa do seu pecado. A paz e a
felicidade voltam ao rosto do rei de Israel apenas quando ele reconhece e
deseja reparar o mal cometido.
O pecado nos coloca no sono mais profundo e nos impede de encontrar a
paz que deve reinar em nossas vidas. Só por intermédio da paz, que nasce
do encontro com Cristo misericordioso, ao nos arrependermos, poderemos
encontrar a felicidade. Os verdadeiros amigos são aqueles que nos ajudam
a despertar e a ver a realidade em toda sua complexidade, como fez Natã
com Davi. Eles são capazes disso não porque sabem mais ou são mais
capacitados, mas, sim, porque nos amam. Como está escrito em
Eclesiástico: "O amigo fiel é poderoso refúgio, quem o descobriu,
descobriu um tesouro" (Eclo 6,14).
A crise de felicidade está proporcionalmente relacionada com uma crise
de amizade. Poucos encontram verdadeiros amigos. Muitas vezes, não
sabemos ser bons amigos. Neste clima de preparação para a Jornada
Mundial da Juventude, que será sediada na cidade do Rio de Janeiro,
conclamo ao jovem: desperte com o encontro com Cristo, o dom da amizade.
Não se pode ser cristão sozinho. Jovem evangeliza jovem. Com razão
impacta, positivamente, milhões de pessoas a participação nas Jornadas
Mundiais da Juventude, no encontro com Cristo juntamente com o Santo
Padre o Papa. Nessas jornadas, os jovens descobrem que a amizade já
existe entre eles, pois todos possuem em comum o grande Amigo Jesus
Cristo, Aquele que nunca nos abandona.
Dizem que hoje as pessoas não querem se relacionar, desejam apenas se
"conectar", pois é mais fácil colocar o outro em "off". O medo de criar
laços sólidos brota, em muitos casos, da incerteza do amor. O pecado
apaga de nossas vidas a certeza de que é possível amar. A fragmentação
de nosso ser, oriunda do pecado, nos impede de confiar no outro.
Assim, neste importante tempo de Quaresma despertemos novamente o nosso
desejo de felicidade. Purifiquemos nossas almas do pecado, que
obstaculiza o encontro com Cristo, Amigo capaz de nos guiar com passos
seguros. Como o Rei Davi, peçamos a Deus piedade por nossos pecados. Não
tenhamos medo de reconhecer nossas transgressões.
Deus conhece nosso ser, ama a verdade e nos ensina a sabedoria. Ele nos
dá a felicidade, o júbilo e nos purifica de todas as iniquidades,
fazendo-nos "mais brancos do que a neve". Sobretudo, Deus cria em cada
um de nós um coração novo com a ajuda da penitência e do perdão
sacramental. A via quaresmal, bem vivida, despertará em nós um espírito
firme e devolverá o júbilo da salvação (cf. Sal 51).
Que nesta Quaresma tenhamos a coragem de fazer uma passagem profunda de
purificação do pecado para a graça, no caminho bonito do itinerário do
seguimento e discipulado do Redentor!
Dom Orani João Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro
fonte: http://jardimdafe.blogspot.com.br/2012/02/o-pecado-e-o-maior-obstaculo-para-o.html